Em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos (CDH) nesta segunda-feira (10), especialistas defenderam a aprovação do projeto de lei que determina a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde haja exploração de trabalho em condições análogas à escravidão (PL 5.970/2019). A proposta, apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), poderá ser analisada pela comissão na quarta-feira (12). Além da aprovação do projeto, os participantes do debate interativo cobraram a adoção de medidas mais rigorosas e perenes contra os responsáveis pela prática do trabalho escravo, bem como a revisão de alguns pontos da reforma trabalhista que, segundo eles, contribuíram para enfraquecer o movimento sindical e precarizar o trabalho rural, por meio da terceirização. — A terceirização é a porta escancarada ao trabalho análogo à escravidão. A aprovação desse projeto de lei vai demonstrar, para aqueles que adotam essa forma de agir para enriquecer, que eles vão perder o que têm; é a desapropriação de fato, tanto no campo como na cidade — afirmou o senador Paulo Paim (PT-RS), que preside a CDH. Paim apontou um avanço considerável do trabalho escravo nos últimos anos, em áreas rurais e urbanas, em setores como lavouras de cana-de-açúcar, pecuária, fumo, carvão vegetal, desmatamento, extrativismo, mineração, construção civil e confecção têxtil. Em 2022, destacou Paulo Paim, foram resgatados 5.575 trabalhadores em condição análoga à escravidão. Entre 1995 e 2022, o Brasil resgatou mais de 60 mil pessoas na mesma condição. Na semana passada, o Ministério do Trabalho atualizou a "lista suja" do trabalho escravo, elaborada duas vezes ao ano (abril e outubro). Foram acrescentados 132 novos nomes à relação (a maior atualização desde 2017), totalizando 289 nomes de empregadores. O senador ressaltou ainda que, em ação recente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declare o trabalho análogo à escravidão como crime inafiançável e imprescritível. Regulamentação Defensor público federal, Eduardo Nunes de Queiroz apontou a importância da aprovação do PL 5.970/2019 para a defesa dos direitos humanos no Brasil. A proposição, afirmou, atende uma situação que perdura desde 2014, quando foi promulgada a Emenda Constitucional 81, ainda pendente de regulamentação, que instituiu a obrigação do poder público de buscar a desapropriação e conversão de bens destinados à exploração do trabalho escravo em prol dos trabalhadores resgatados. — A União vem resistindo a aplicar analogicamente a legislação, e a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, em duas oportunidades, recomendou ao país que regulamentasse essa questão para o enfrentamento efetivo da questão do trabalho escravo no país. Dentro do espectro do projeto de lei, resolve uma demora de quase uma década de regulamentação desse artigo. Há um valor muito importante, porque aprofunda o conceito de trabalho escravo, em sintonia com as convenções da OIT [Organização Internacional do Trabalho] que tratam do tema, e também entra na ordem do dia porque é um tema de repercussão geral reconhecida no STF — afirmou. Assim como a regulamentação da emenda constitucional, é essencial que o Brasil ratifique o protocolo adicional da Convenção 29 da OIT e o ponha em prática, destacou o diretor do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Renato Bignami. O protocolo adicional trata das cadeias produtivas e das cadeias de fornecimento, “o que vem a ser a nova fronteira do enfrentamento da sociedade brasileira e do sistema nacional de combate ao trabalho escravo, para fins de garantir uma maior efetividade das operações”, ressaltou: — Essa é uma questão fundamental. É necessário que o sistema brasileiro avance para abordar de uma forma um pouco mais qualificada as cadeias de fornecimento, justamente para buscar as diversas responsabilidades que ocorrem em determinada cadeia. Não pode ser que apenas o empregador imediato daquele trabalhador sofra com a responsabilização, até mesmo porque há diversas cadeias trabalhando, muitas vezes os fornecedores trabalham exclusivamente em nome dessas grandes empresas que têm todas as condições, ou deveriam ter, para garantir um grau de vigilância sobre os diversos elos da cadeia que garantisse a prevenção desses casos graves de violação de direitos fundamentais. Essa é uma questão que trata da gestão dos terceiros. Presidente da ONG Repórter Brasil, o jornalista Leonardo Sakamoto disse que o Brasil é visto pelo sistema da Organização das Nações Unidas (ONU) como um exemplo global de combate ao trabalho escravo contemporâneo, tendo em vista que o país conseguiu avançar na fiscalização e nas indenizações trabalhistas, na aplicação de multas de inspeção, na "lista suja" com constitucionalidade validada por unanimidade pelo STF, no dispositivo 149 do código penal bastante claro sobre trabalho escravo. Ele também citou a proibição de crédito rural a quem usa mão de obra análoga à escravidão e leis estaduais e municipais a respeito do tema. — Se o Brasil é, por um lado, um exemplo global no combate a esse crime (de 1995 até agora é considerado um exemplo), corremos o risco de não sermos mais, porque nós avançamos bastante durante décadas, mas o mundo está avançando a partir de onde o Brasil também parou, no debate sobre a questão da responsabilização das cadeias produtivas, da obrigação de as empregas olharem para as suas cadeias de valor, evitar que os negócios atrapalham a qualidade de vida dos negócios e das pessoas, que os negócios sirvam para o desenvolvimento econômico da sociedade, e não simplesmente para a acumulação das mais primitivas possíveis — afirmou. Reforma trabalhista Na avaliação do secretário de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, Luiz Felipe de Mello, a reforma trabalhista (Lei 13.467, de 2017) enfraqueceu as entidades sindicais e questões contratuais. Por sua vez, o presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Luiz Antonio Colussi, destacou emenda apresentada pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES) ao artigo primeiro do PL 5.970/2019, como forma de garantir que a expropriação somente poderá ocorrer pela via judicial em ação específica de natureza penal ou trabalhista. Presidente do Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA), João Daldegan Sobrinho destacou que o país já conta com arcabouço necessário para a expropriação de terras. — A reforma agrária é a solução. Até hoje o crime compensa. Pela lei atual, são multas. A expropriação seria um caso drástico, um remédio amargo necessário nesse momento, porque seria um recado claro à sociedade e aos que promovem trabalho escravo — afirmou. Diretor de Combate e Superação do Racismo do Ministério da Igualdade Racial, Yuri Santos de Jesus da Silva defendeu punição severa a quem promove trabalho escravo, que ele considera “uma chaga social” diretamente relacionada à tradição escravista do Brasil, que promoveu a retirada de mais de 5 milhões de negros do continente africano. — 84% das vítimas do trabalho escravo são pessoas pretas e pardas, chegando a 95%, como no caso das vinícolas de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Fica evidente que estamos diante de forma moderna de escravidão, que precisa ser punida para que a chaga do racismo seja enfraquecida e superada — afirmou. Invisibillidade e discriminação Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Aristides Veras dos Santos destacou que o problema atinge principalmente homens negros e pobres, submetidos a uma situação que se complicou nos últimos anos, “como se o mal e o desrespeito tivessem sido incentivados”. — Apesar de o trabalho escravo ter o branco também, a pobreza é a principal condição que leva a essa situação; o negro é tratado de forma diferente, o que a gente lamenta. Não podemos tolerar, conviver ou aceitar esse tipo de comportamento, que vai além da questão trabalhista, é uma questão de direitos humanos. Para coibir o trabalho escravo, todas as medidas possíveis do ponto de vista criminal e econômico têm que ser adotadas, não dá para ficar dez anos para regulamentar uma lei tão importante para coibir algo tão danoso — afirmou. Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar), Gabriel Bezerra Santos afirmou que o trabalho escravo teve avanço acentuado a partir do “golpe” que provocou o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff. Ele também apontou a precarização das relações de trabalho nos meios rural e urbano, além de ter defendido a realização de concurso público para recomposição das vagas de auditores fiscais do trabalho. — A própria sociedade precisa combater a prática do trabalho escravo, que ocorre em cadeias ricas. O agronegócio gera riquezas, mas, lamentavelmente, ainda tem trabalho escravo hoje em dia — afirmou. Coordenador da Campanha Nacional contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o frei dominicano Xavier Jean Marie Plassat ressaltou que as denúncias de trabalho escravo acumulam-se há mais de duas décadas. — O trabalho escravo só prospera na invisibilidade. No Brasil, a escravidão não acontece por acaso, ela acontece em decorrência de discriminação histórica, estrutural. Isso é o DNA do Brasil, mecanismos de brutalidade que retiram a característica da condição humana. O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, mas tomou essa decisão em duas circunstâncias bem interessantes. Trinta anos antes aprovou uma lei de terras que tirou a possibilidade de o pobre trabalhador libertado ter uma terra. Ao fazer a Independência, trocou só de parente na direção do país e não fez a reforma agrária, a reforma democrática, não proclamou a República. Isso tem uma persistência fundamental das mazelas que estão na base do sistema escravagista, isso impõe as atuais condições degradantes. Nos últimos 27 anos, a CPT encontrou mais de 64 mil pessoas em condições de escravidão. É um fluxo que se alimenta e se retroalimenta ano após ano — afirmou. Diretor dos filmes Pureza e Servidão, que tratam da temática do trabalho escravo, Renato Barbieri ressaltou que a sociedade brasileira não se deu conta de transformar o Brasil em um país digno. — Todos nós temos que virar abolicionistas, homens e mulheres. Esse não é um tema entre mil temas, esse é o tema central, porque o Brasil precisa entrar de fato na era da dignidade contemporânea para todos — concluiu.
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