A agricultora Elpídia Pereira, de 74 anos, olha para o alto da mangueira que ela plantou há cinco décadas e enxerga o passado. “Naquele tempo, era muito diferente. Chovia muito mais”. E não é só isso. Na comunidade quilombola Mesquita, em que ela nasceu e foi criada, em Cidade Ocidental (GO), há queixas dos agricultores porque proprietários de terras nas cercanias utilizariam agrotóxicos e há o pedido uníssono pela titulação da terra.
A mangueira que Elpídia plantou há tanto tempo abrigou, neste sábado (20), uma roda de conversa organizada pelo Festival Latinidades, na edição goiana, para tratar dos desafios socioambientais atuais que ameaçam a produção dos quilombolas.
A comunidade Mesquita, que fica a aproximadamente 50 quilômetros de Brasília, tem uma história de 278 anos, em que hoje residem mais de 700 famílias e uma população acima de três mil pessoas. A roda de conversa do festival, que chegou à 17ª edição, trouxe o tema Guardiões do amanhã: diálogos sobre produção cultural, racismo ambiental e justiça climática .
Elpídia tem saudades de outros tempos, quando chovia muito mais. Inclusive, quando conseguiam plantar arroz, que precisa de um regime de chuvas mais longo. “Antes, só tínhamos que comprar sal. O resto, a terra dava”, recorda. Mesmo assim, a secura de estiagens no Centro-Oeste brasileiro não tirou o clima mais ameno porque é um local de mata preservado.
Quem mora na comunidade também tenta se proteger da entrada de alimentos como os refrigerantes. “A gente tenta educar os mais novos a tomar sucos das frutas do cerrado”, afirma a liderança dessa comunidade em Goiás, Sandra Pereira, de 56 anos.
De acordo com ela, a necessidade de titulação das terras, que somam 4,2 mil hectares, seria fundamental para garantir segurança para quem vive ali, já que grandes proprietários acabam adentrando com frequência pelo território quilombola. Sandra explica que 40% do território é para a plantação e sustento das pessoas, e o restante do território é de Cerrado preservado.
Sandra Pereira recorda que o reconhecimento da terra ocorreu há 18 anos, mas nunca titulado. “Espero que ainda neste ano ocorra essa titulação. O que queremos é que o nosso modo de vida seja respeitado e protegido”.
Ela conta que já recebeu ameaças de violência por causa de sua luta. “No próximo dia 17, a morte de Mãe Bernadete [na comunidade de Pitanga dos Palmares, na Bahia] completa um ano. Ela esteve aqui duas vezes. Ela só queria garantir os direitos e morreu”, diz. Sandra entende que lideranças de povos originários em todo o país são ameaçadas e necessitam de proteção.
Os agricultores da comunidade trabalham com viveiros de plantas e respeito aos saberes ancestrais de agroecologia. Os produtos são reconhecidos na comunidade e fora dela. “A mandioca é um dos mais vendidos porque organizamos espaços diferentes para plantação e colheita, e também por resistir às estiagens. Aqui é nosso berço sagrado”. O irmão dela, João Paulo, descascava a mandioca lembrando que o produto vai garantir farinha, caldo, bolo. “É muito importante para a gente”.
O berço também é para quem tem menos idade. De acordo com o estudante de artes visuais Walisson Braga, de 27 anos, pessoas mais jovens que tiveram que sair para estudar e trabalhar estão voltando a viver na comunidade. “Esse modo de vida mais natural e o clima mais fresco atraem pessoas da minha idade”. Ele é um dos apaixonados pela terra onde nasceu e cresceu. Um dos motivos tem a ver com ideais. Ele não larga o celular e também outros equipamentos para registrar os mais velhos. “Fotografar e filmar garantem também a memória. Ouvia histórias dos mais velhos e perguntava por fotos. E eles não tinham. Agora estão tendo”, afirma.
Os mais jovens, vendo a luta dos pais e avós, resolveram estudar para colocar em prática conhecimentos na terra em que nasceram. Um dos exemplos é a agrônoma Danuza Lisboa. Ela recorda que uma grande transformação ocorreu certa vez em que ela trabalhava como doméstica. Os patrões disseram a ela que não poderia ter a mesma comida que todos faziam as refeições. Ela ficou em choque. “Eu não mereço isso. Foi fazer cursinho em Brasília. Saía de casa às 4h30 durante mais de um ano”. Conseguiu ingressar na Universidade de Brasília e formou-se em 2020.
Hoje é doutoranda em agronomia e estuda o marmelo, um dos produtos mais conhecidos que a comunidade vende na cidade. No mestrado, estudou como os agricultores poderiam cuidar da tangerina depois da colheita. “Sempre estive preocupada com a minha comunidade. O intuito sempre foi o de colaborar para ajudar meu povo”. Ela cita que a venda das hortaliças e das frutas tem garantido o sustento das famílias durante todo o ano. Mesmo com os prejuízos causados pelas mudanças climáticas. “Antes chovia de outubro a maio. Hoje, é de novembro a março”, lamenta a agrônoma.
Para enfrentar esse impacto, a especialista diz que seria ideal haver mais investimentos em tecnologias. No entanto, isso não é possível porque, para o agricultor ter acesso à linha de crédito, seria necessário que a terra fosse titulada.
Segundo a assistente da direção-geral do festival Latinidades, Cinthia Santos, os diálogos com a população originária são fundamentais para o avanço das temáticas, já que a comunidade é “especialista em cuidar”. As iniciativas dos quilombolas são inspirações para o festival. Outra iniciativa, além da roda de conversa, é a produção de um documentário sobre a vida da comunidade para garantir difusão e colaborar com a visibilidade da luta dos quilombolas. “Entendemos que devemos trabalhar pela equidade de gênero e raça para haver sustentabilidade”.
A diretora de Políticas para Quilombolas e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Paula Balduino, que também estava presente ao evento na comunidade, garante que a regularização dos territórios de quilombolas no Brasil é uma prioridade atual. Ela explica que a política de regularização é complexa, mas que há uma agenda nacional de titulação para aprimorar a política.
“A gente tem dialogado muito com o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e outros órgãos para buscar maneiras de acelerar esse processo e de articular com os estados e com o Poder Judiciário”, diz Paula. No caso da comunidade Mesquita, a definição pela regularização está no âmbito da Justiça.
A diretora explica que ainda há comunidades que não sabem em que instituição está sendo analisada a titulação. “A gente está trabalhando também em uma maneira de organizar esses dados e apresentar eles para a sociedade, especialmente para as comunidades, para que elas tenham essa compreensão de cada etapa do seu processo”.
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